“Por
vezes me pergunto se a chave da felicidade não reside na ignorância.”
Geralmente, é muito difícil definir
algo, porque tudo e qualquer coisa será avaliado a partir de nosso pequeno
conhecimento. E, como Dostoiévski bem apontou em Memórias do Subsolo, mesmo nosso lado racional, nossa razão, depende do que já
obtivemos de conhecimento do mundo. Quando menciono “definir algo” não me
refiro apenas a coisas, e, sim, também a objetos, situações, momentos e
pessoas. Tudo depende de nossa bagagem ao pensar sobre determinada coisa, que
resultará em nossa interpretação e opinião. Vendo assim, não é estranho dizer
que toda transição é uma descoberta, todos os erros possuem certa base. Seja a
passagem da fase infantil à adolescência, seja o conhecimento do desconhecido
que pode ser uma pessoa próxima. Mesmo os sentimentos dependem disso, e
até mesmo eles sofrem certa alternação. Um breve exemplo: depois do medo, vem (geralmente)
o alívio; assim também é com a tristeza, que em algum momento (ou não, há exceções) abre espaço para
sensações mais agradáveis e libertadoras.
Com a curiosidade não é diferente.
Ansiar pelo final do livro, para saber como a história termina e então ter a
curiosidade saciada (ou não) também acaba levando a outra sensação. É como um
ciclo sem fim, que só termina com a morte. Ler Pretérito Imperfeito, do Gustavo Araujo, me fez pensar um pouco
nisso; a pensar mais um pouco sobre a dor do luto e a morte, e aqui não posso deixar
de associar e de mencionar a leitura de Confissões do Crematório,
que aborda tão bem nossa relação com o fim da vida; a pensar sobre a relação entre pais e
filhos, principalmente o lado paterno, o que me fez lembrar de outra leitura
recente, No Mar; e, no decorrer da obra, me lembrei de uma leitura que fiz
no ensino fundamental de uma obra italiana, que muito me encantou. Esta
obra em questão chama-se Pai Patrão,
do escritor Gavino Ledda, que acredito que li na sétima série, mais ou menos;
sim, faz tempo, tanto tempo que mal me lembro da obra (infelizmente). O ponto é
que esse livro italiano me marcou devido a essa relação de pai e filho que
também aparece – e achei isso muito curioso – na obra do Gustavo Araujo; um pai
severo, trabalha no campo e não permite, de certo modo, ao filho que este
estude e faça algo diferente na vida. Mas essa parte, aliás, é apenas um pedaço
do enredo de Pretérito Imperfeito.
A obra traz três personagens
principais, cujas histórias se intercalam. Primeiramente, somos apresentados a
Antônio, ou Toninho, um menino de treze anos que perdera a mãe, Dona Catarina,
de quem sente muita saudade, lhe restando apenas o pai, com quem não tem um
relacionamento muito afetivo – um reflexo da própria história com o vô do
menino, Francisco. Vale considerar que, graças à mãe, ele nutre um interesse
enorme por pássaros, o que lhe dá algo com que se ocupar na ausência do pai e,
de certo modo, suportar melhor a tristeza da perda. Além disso, Toninho é um
menino solitário, sem amigos e que, infelizmente, tinha um relacionamento
excepcionalmente ruim com as aulas de Língua Portuguesa e Literatura; ele
detestava principalmente o fato de ler em voz alta na classe, pois tinha dificuldades
e acabava gaguejando. Embora não do mesmo modo, me simpatizei com essa
dificuldade de Toninho, pois eu também a tinha na escola – embora meu problema
fosse muito mais associado à timidez/vergonha.
“É
claro que sempre sentia falta da mãe. Todos os dias tinha saudades dela, mas
havia ocasiões em que a ausência de Dona Catarina lhe atingia o peito como uma
força tão inesperada quanto desproporcional, inundando-o de saudade.”
A outra protagonista é Cecília, uma
menina de treze anos, também, mas que difere grandemente de Toninho, seja pela
condição econômica – dado que ela é de uma família abastada –, seja pela
personalidade. Ou, também, pelo fato de que ela gosta muito de ler – sendo ela
o motivo de menções a grandes autores da Literatura Brasileira; se achei
interessante um livro nacional mencionar clássicos nacionais? Bastante, por
sinal, apesar de não ter lido grande maioria das obras citadas. De início, algo nela não me agradou, não sei dizer exatamente o quê. No
decorrer da história, porém, essa sensação desagradável foi embora.
A história de Cecília é apresentada principalmente por suas cartas destinadas a
uma amiga chamada Carol, em que relata sua situação familiar – um tanto “tensa”,
eu diria. Devido a uma investigação, o pai de Cecília ‘foge’ e promete voltar
para buscar tanto ela quanto a mãe, quando ele resolvesse sua situação, mas
elas deveriam permanecer como que “enclausuradas”, sem contato com o resto da
cidade. Apesar disso, é numa pequena volta pelo bosque, contudo, que Cecília encontra Felipe
(o Toninho, para quem ela se chama Mariana).
Para ambos, a amizade que surge é
quase como um refúgio de todo o resto. Sem as barreiras que teriam caso se
conhecessem na escola ou mesmo na cidade, os dois se tornam amigos rapidamente,
aproveitando a companhia do outro. A meu ver, a amizade dos dois é aquela
amizade ‘bonita’, sem preconceitos e que, de fato, lhes permite aproveitar o
tempo e ‘amenizar’ os problemas familiares. Embora por questões diferentes,
ambos mostram que a relação de pais e filhos é difícil, e que as crianças – ou adolescentes
– acabam, por vezes, criando uma imagem do pai que não condiz com a realidade.
E, voltando ao que mencionei acima, a questão de que não se conhece o todo aparece
novamente, o que não deixa de ser um vácuo ou um espaço de desconhecimento
entre eles. Ou, até, um espaço que dificulta o diálogo e/ou compreensão.
“—
É engraçado como isso acontece, não é mesmo? Quando somos crianças, enxergamos
nossos pais como infalíveis. São modelos de perfeição. São aqueles que nos
protegem, de quem nos orgulhamos. São nossos heróis, representam a virtude. São
os mais fortes, os mais bonitos, os mais inteligentes.
Toninho nunca teve essa imagem do próprio pai, mas achou
melhor ficar quieto e deixar Mariana falar.
—
Só que chega uma hora — prosseguiu ela — que essa imagem se desfaz. O rei perde
a coroa, o príncipe vira sapo. Começamos a enxergar as fragilidades, os
defeitos, as manias, as maldades.”
Não é difícil de entender e simpatizar com essa ideia de que com a passagem do tempo e o amadurecimento, vamos percebendo detalhes que em outros tempos não perceberíamos. Passamos, de certo modo, a conhecer o lado que não víamos de nossos familiares, cuja mente de criança não permitia enxergar. Vamos nos permitindo descobrir e compreender o outro; a associar o passado com o presente e, ao mesmo tempo, dissociá-los. Ademais, essa relação me faz pensar nas crianças que, infelizmente, acabam crescendo 'enclausuradas', sem conhecer, de fato, a realidade, imaginando e praticamente enxergando nos pais os "modelos de perfeição"; o que só vem a mudar com a adolescência, o contato na e fora da escola e com o trabalho, quando passam a ver que há um outro mundo para além do espaço de casa. Enfim, é uma questão complexa.
E, por fim, o terceiro personagem principal é o pai de Toninho, Seu Pedro. Além do conhecimento de sua relação com o filho, somos apresentados ao seu passado, desde criança ao desentendimento com o pai, o desejo por uma vida diferente e busca por essa mudança. As partes relacionadas ao Seu Pedro, a meu ver, são as que mais possibilitam que vejamos como o livro tem um teor, digamos, pesado. Até mesmo é a que permite que observemos sobre como agimos com o outro e a mando de outrem. Isso porque, embora as partes de Cecília e Toninho estejam, também, imbuídas de questões importantes e até ‘pesadas’ – como o fato de Toninho lidar com a morte da mãe –, possuem, de certo modo, um olhar mais sutil, com foco maior nos personagens do que no que passa exatamente ao redor – não deixando de considerar, como aponta o próprio prefácio, de como o ambiente afeta as crianças/adolescentes.
E, por fim, o terceiro personagem principal é o pai de Toninho, Seu Pedro. Além do conhecimento de sua relação com o filho, somos apresentados ao seu passado, desde criança ao desentendimento com o pai, o desejo por uma vida diferente e busca por essa mudança. As partes relacionadas ao Seu Pedro, a meu ver, são as que mais possibilitam que vejamos como o livro tem um teor, digamos, pesado. Até mesmo é a que permite que observemos sobre como agimos com o outro e a mando de outrem. Isso porque, embora as partes de Cecília e Toninho estejam, também, imbuídas de questões importantes e até ‘pesadas’ – como o fato de Toninho lidar com a morte da mãe –, possuem, de certo modo, um olhar mais sutil, com foco maior nos personagens do que no que passa exatamente ao redor – não deixando de considerar, como aponta o próprio prefácio, de como o ambiente afeta as crianças/adolescentes.
Em certo ponto da leitura, fiquei me
questionando se o título teria relação, de certa forma, com o tempo verbal,
aquele da gramática mesmo. Indicando, possivelmente, além de um passado que é imperfeito, ações que
estão no passado, mas que percorrem por períodos mais extensos de tempo, ações
não tão pontuais. O que me parece que faria sentido com a história. Não seria
uma brincadeira curiosa com o nome do livro? Ao mesmo tempo, essa ligação de
que comento foi, também, o que me deixou com um ponto de interrogação ao
terminar a leitura. Isto, aliás, me lembrou de Outra Volta do Parafuso, de Henry James – talvez quem já tenha lido
ambas as obras entenda minha sutil comparação.
Num geral, a leitura foi uma surpresa
encantadora, com uma leitura fluida e uma história emocionante, que conseguiu
me deixar curiosa quanto ao final, aliás, convenhamos, esse final... spoilers. Enfim, diria, até, que cumpriu com minhas expectativas. Havia
me interessado pelo livro desde que ouvi – e li – a Helena comentando a respeito (aliás, recomendo a leitura da resenha dela). Que surpresa não foi o autor ter me proposto parceira para a leitura da obra, o
que me permitiu dar uma outra chance à literatura nacional; aliás, obrigada! Esta foi a primeira leitura que
conclui em 2017, e recomendo a quem estiver um pouco desanimado com a
literatura nacional, como eu estava, ou que queira aproveitar uma história
bonitinha, com certa dose de ‘drama’.
Terminando este livro, fiquei
com vontade de reler Pai Patrão...
ARAUJO, Gustavo. Pretérito imperfeito. Campo Grande, MS: Caligo, 2015. 286 p.