quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Pretérito Imperfeito, de Gustavo Araujo

Por vezes me pergunto se a chave da felicidade não reside na ignorância.”

Geralmente, é muito difícil definir algo, porque tudo e qualquer coisa será avaliado a partir de nosso pequeno conhecimento. E, como Dostoiévski bem apontou em Memórias do Subsolo, mesmo nosso lado racional, nossa razão, depende do que já obtivemos de conhecimento do mundo. Quando menciono “definir algo” não me refiro apenas a coisas, e, sim, também a objetos, situações, momentos e pessoas. Tudo depende de nossa bagagem ao pensar sobre determinada coisa, que resultará em nossa interpretação e opinião. Vendo assim, não é estranho dizer que toda transição é uma descoberta, todos os erros possuem certa base. Seja a passagem da fase infantil à adolescência, seja o conhecimento do desconhecido que pode ser uma pessoa próxima. Mesmo os sentimentos dependem disso, e até mesmo eles sofrem certa alternação. Um breve exemplo: depois do medo, vem (geralmente) o alívio; assim também é com a tristeza, que em algum momento (ou não, há exceções) abre espaço para sensações mais agradáveis e libertadoras.
Com a curiosidade não é diferente. Ansiar pelo final do livro, para saber como a história termina e então ter a curiosidade saciada (ou não) também acaba levando a outra sensação. É como um ciclo sem fim, que só termina com a morte. Ler Pretérito Imperfeito, do Gustavo Araujo, me fez pensar um pouco nisso; a pensar mais um pouco sobre a dor do luto e a morte, e aqui não posso deixar de associar e de mencionar a leitura de Confissões do Crematório, que aborda tão bem nossa relação com o fim da vida; a pensar sobre a relação entre pais e filhos, principalmente o lado paterno, o que me fez lembrar de outra leitura recente, No Mar; e, no decorrer da obra, me lembrei de uma leitura que fiz no ensino fundamental de uma obra italiana, que muito me encantou. Esta obra em questão chama-se Pai Patrão, do escritor Gavino Ledda, que acredito que li na sétima série, mais ou menos; sim, faz tempo, tanto tempo que mal me lembro da obra (infelizmente). O ponto é que esse livro italiano me marcou devido a essa relação de pai e filho que também aparece – e achei isso muito curioso – na obra do Gustavo Araujo; um pai severo, trabalha no campo e não permite, de certo modo, ao filho que este estude e faça algo diferente na vida. Mas essa parte, aliás, é apenas um pedaço do enredo de Pretérito Imperfeito.

A obra traz três personagens principais, cujas histórias se intercalam. Primeiramente, somos apresentados a Antônio, ou Toninho, um menino de treze anos que perdera a mãe, Dona Catarina, de quem sente muita saudade, lhe restando apenas o pai, com quem não tem um relacionamento muito afetivo – um reflexo da própria história com o vô do menino, Francisco. Vale considerar que, graças à mãe, ele nutre um interesse enorme por pássaros, o que lhe dá algo com que se ocupar na ausência do pai e, de certo modo, suportar melhor a tristeza da perda. Além disso, Toninho é um menino solitário, sem amigos e que, infelizmente, tinha um relacionamento excepcionalmente ruim com as aulas de Língua Portuguesa e Literatura; ele detestava principalmente o fato de ler em voz alta na classe, pois tinha dificuldades e acabava gaguejando. Embora não do mesmo modo, me simpatizei com essa dificuldade de Toninho, pois eu também a tinha na escola – embora meu problema fosse muito mais associado à timidez/vergonha.

“É claro que sempre sentia falta da mãe. Todos os dias tinha saudades dela, mas havia ocasiões em que a ausência de Dona Catarina lhe atingia o peito como uma força tão inesperada quanto desproporcional, inundando-o de saudade.”

A outra protagonista é Cecília, uma menina de treze anos, também, mas que difere grandemente de Toninho, seja pela condição econômica – dado que ela é de uma família abastada –, seja pela personalidade. Ou, também, pelo fato de que ela gosta muito de ler – sendo ela o motivo de menções a grandes autores da Literatura Brasileira; se achei interessante um livro nacional mencionar clássicos nacionais? Bastante, por sinal, apesar de não ter lido grande maioria das obras citadas. De início, algo nela não me agradou, não sei dizer exatamente o quê. No decorrer da história, porém, essa sensação desagradável foi embora. A história de Cecília é apresentada principalmente por suas cartas destinadas a uma amiga chamada Carol, em que relata sua situação familiar – um tanto “tensa”, eu diria. Devido a uma investigação, o pai de Cecília ‘foge’ e promete voltar para buscar tanto ela quanto a mãe, quando ele resolvesse sua situação, mas elas deveriam permanecer como que “enclausuradas”, sem contato com o resto da cidade. Apesar disso, é numa pequena volta pelo bosque, contudo, que Cecília encontra Felipe (o Toninho, para quem ela se chama Mariana).
Para ambos, a amizade que surge é quase como um refúgio de todo o resto. Sem as barreiras que teriam caso se conhecessem na escola ou mesmo na cidade, os dois se tornam amigos rapidamente, aproveitando a companhia do outro. A meu ver, a amizade dos dois é aquela amizade ‘bonita’, sem preconceitos e que, de fato, lhes permite aproveitar o tempo e ‘amenizar’ os problemas familiares. Embora por questões diferentes, ambos mostram que a relação de pais e filhos é difícil, e que as crianças – ou adolescentes – acabam, por vezes, criando uma imagem do pai que não condiz com a realidade. E, voltando ao que mencionei acima, a questão de que não se conhece o todo aparece novamente, o que não deixa de ser um vácuo ou um espaço de desconhecimento entre eles. Ou, até, um espaço que dificulta o diálogo e/ou compreensão.

“— É engraçado como isso acontece, não é mesmo? Quando somos crianças, enxergamos nossos pais como infalíveis. São modelos de perfeição. São aqueles que nos protegem, de quem nos orgulhamos. São nossos heróis, representam a virtude. São os mais fortes, os mais bonitos, os mais inteligentes.
Toninho nunca teve essa imagem do próprio pai, mas achou melhor ficar quieto e deixar Mariana falar.
— Só que chega uma hora — prosseguiu ela — que essa imagem se desfaz. O rei perde a coroa, o príncipe vira sapo. Começamos a enxergar as fragilidades, os defeitos, as manias, as maldades.”

Não é difícil de entender e simpatizar com essa ideia de que com a passagem do tempo e o amadurecimento, vamos percebendo detalhes que em outros tempos não perceberíamos. Passamos, de certo modo, a conhecer o lado que não víamos de nossos familiares, cuja mente de criança não permitia enxergar. Vamos nos permitindo descobrir e compreender o outro; a associar o passado com o presente e, ao mesmo tempo, dissociá-los. Ademais, essa relação me faz pensar nas crianças que, infelizmente, acabam crescendo 'enclausuradas', sem conhecer, de fato, a realidade, imaginando e praticamente enxergando nos pais os "modelos de perfeição"; o que só vem a mudar com a adolescência, o contato na e fora da escola e com o trabalho, quando passam a ver que há um outro mundo para além do espaço de casa. Enfim, é uma questão complexa.

E, por fim, o terceiro personagem principal é o pai de Toninho, Seu Pedro. Além do conhecimento de sua relação com o filho, somos apresentados ao seu passado, desde criança ao desentendimento com o pai, o desejo por uma vida diferente e busca por essa mudança. As partes relacionadas ao Seu Pedro, a meu ver, são as que mais possibilitam que vejamos como o livro tem um teor, digamos, pesado. Até mesmo é a que permite que observemos sobre como agimos com o outro e a mando de outrem. Isso porque, embora as partes de Cecília e Toninho estejam, também, imbuídas de questões importantes e até ‘pesadas’ – como o fato de Toninho lidar com a morte da mãe –, possuem, de certo modo, um olhar mais sutil, com foco maior nos personagens do que no que passa exatamente ao redor – não deixando de considerar, como aponta o próprio prefácio, de como o ambiente afeta as crianças/adolescentes.
Em certo ponto da leitura, fiquei me questionando se o título teria relação, de certa forma, com o tempo verbal, aquele da gramática mesmo. Indicando, possivelmente, além de um passado que é imperfeito, ações que estão no passado, mas que percorrem por períodos mais extensos de tempo, ações não tão pontuais. O que me parece que faria sentido com a história. Não seria uma brincadeira curiosa com o nome do livro? Ao mesmo tempo, essa ligação de que comento foi, também, o que me deixou com um ponto de interrogação ao terminar a leitura. Isto, aliás, me lembrou de Outra Volta do Parafuso, de Henry James – talvez quem já tenha lido ambas as obras entenda minha sutil comparação.
Num geral, a leitura foi uma surpresa encantadora, com uma leitura fluida e uma história emocionante, que conseguiu me deixar curiosa quanto ao final, aliás, convenhamos, esse final... spoilers. Enfim, diria, até, que cumpriu com minhas expectativas. Havia me interessado pelo livro desde que ouvi – e li – a Helena comentando a respeito (aliás, recomendo a leitura da resenha dela). Que surpresa não foi o autor ter me proposto parceira para a leitura da obra, o que me permitiu dar uma outra chance à literatura nacional; aliás, obrigada! Esta foi a primeira leitura que conclui em 2017, e recomendo a quem estiver um pouco desanimado com a literatura nacional, como eu estava, ou que queira aproveitar uma história bonitinha, com certa dose de ‘drama’. 
Terminando este livro, fiquei com vontade de reler Pai Patrão...  

ARAUJO, Gustavo. Pretérito imperfeito. Campo Grande, MS: Caligo, 2015. 286 p.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Confissões do Crematório, de Caitlin Doughty

“Por mais que nos vejamos como sendo pessoas de mentes abertas, ainda estamos aprisionados por nossas crenças culturais.” (DOUGHTY, 2016, p. 79).

Algumas vezes no decorrer dos últimos anos, tive algumas conversas das quais gosto de dizer que foram “uma viagem”. Não em um sentido negativo; um positivo. No ponto em que essas conversas fugiam do “comum/cotidiano” e me faziam pensar um pouco além da minha caixinha; por isso ‘viagem’, por me levar a outros espaços. Algumas podem ter sido até que bizarras, outras, curiosamente incríveis. Infelizmente, não são conversas que se pode ter com qualquer pessoa; não é qualquer um que vai te ouvir falar sobre a influência das portas sem achar isso incrivelmente estranho/bizarro – a menos que tenha lido A elegância do ouriço. Após algumas dessas conversas, além de perceber que algumas pessoas são mais mentes abertas que outras – apesar de, como diz a citação de abertura deste texto, há certo limite para nossas mentes abertas –, cada vez mais passei a ver o quanto cada sujeito único pode nos afetar, mesmo sem perceber. E essas pequenas conversas, por exemplo, ajudaram a moldar a eu de agora. Estamos sempre aprendendo, e as pessoas que conhecemos vão importar em cada momento e em cada atitude nossa. Não prolongando demais, o fato é que a vida, em si, é uma constante mudança, que não depende, jamais, apenas de nós mesmos.

O livro vem com esse cartãozinho. Bonitinho, não?
Volto, então, a uma das conversas que tive nesse último semestre. Foi sobre um documentário: Adeus, Betty. Recomendo que assistam, é um tanto trágico, mas curioso. Ao refletir sobre o que assisti, dentre vários pontos, como a importância da imagem e dos relacionamentos, a questão do “suicídio” é a que vem ao encontro do livro que quero comentar desta vez. O documentário não é sobre suicídio, mas não deixa de mencioná-lo. Betty queria morrer – ou seria atenção? – e pedia isso aos seus conhecidos; pedia que a matassem. Ignorando a parte do possível desejo de atenção, havia um desejo de sumir, de escapar de um futuro incerto e desagradável. Bem, gosto de pensar que existem duas mortes: a física e a psíquica. Betty provavelmente estava perdendo a vivacidade de sua mente (ou alma, não sei bem que palavra usar aqui), e via na morte uma escapatória. Se alguém não a matasse, talvez a ajudassem a encontrar um ponto de apoio, algo que a auxiliasse a ver uma ‘luz no fim do túnel’, um futuro menos triste e depressivo. Porque às vezes isso é tudo que as pessoas querem: um apoio, uma certeza de que haverá algo bom. Porque a certeza da morte todos temos.

“A morte guia todos os impulsos criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos.” (DOUGHTY, 2016, p. 13).

Dizem, até, que esta é a única certeza da vida; e talvez seja. Ao mesmo tempo, é muito delicado falar sobre morte. Não preciso nem ir muito longe para expressar isto. Enquanto lia Confissões do crematório, mostrei o livro a algumas pessoas – porque, também, a edição é lindíssima –, que, logo de cara, mostraram em suas falas e expressões o quanto este, tanto a questão do crematório quanto a da morte, é um tema espantoso, assustador, até, e que “não leriam”. Esse livro, ao olhar delas, era algo para mim – a pessoa que gosta de drama e de ler sobre sofrimento e coisas relacionadas à morte –, apenas, e não para elas. É mórbido. Talvez, se eu tivesse mencionado pontos mais detalhados, as pessoas se empolgassem a lê-lo. Ou não. Porque falar de morte não é fácil. Aceitar a própria mortalidade não é fácil. Sinceramente, eu ainda tenho dificuldade de aceitar isso. De que amanhã posso não estar aqui. De que posso morrer sem me sentir bem comigo mesma etc. Enfim, de que a minha morte esteja longe de ser uma boa morte.

“Para mim, a boa morte inclui estar preparada para morrer, com minhas coisas em ordem, os recados bons e ruins que precisam ser entregues resolvidos. A boa morte quer dizer morrer enquanto minha mente está lúcida e ciente; também significa morrer sem ter que enfrentar grandes quantidades de sofrimento e dor.” (DOUGHTY, 2016, p. 223).

Só que este livro não é apenas para quem se interessa por estes temas, ele é para todos. É como um ‘tapa na cara’ dessa “cultura do silêncio”. Não digo que todos irão se encantar com a obra, colocar nos favoritos e dizer “amei”, não. O que Caitlin tem a nos dizer é basicamente que estamos fugindo e negando a única certeza que temos na vida: até porque, como ela mesma diz, “Recusar-se a falar sobre o assunto e chamar a morte de ‘inesperada’ não é uma desculpa aceitável.” (DOUGHTY, 2016, p. 119). E ela faz isso com uma narrativa tranquila e até um tanto divertida. Doughty fala sobre a morte de diversos pontos e mostra que há, no nosso medo dela, uma razão cultural e histórica. Há medos infundados e a necessidade, principalmente, de aceitar a realidade. O que, também, é algo histórico, social e cultural. Nós, como sociedade, às vezes fugimos disso, por medo, receio, pavor. E o desconhecido sempre nos trouxe e trará essas sensações. Admito que pensar na morte e nessa ausência costuma me deixar um tanto triste, com aquela sensação de algo não concluído; um pequeno desespero que vem rápido e certeiro. Mas, por outro lado, também vejo a necessidade de se pensar nisso e tentar encarar esta questão mais de frente, não a jogando para o lado como se fosse possível evitá-la para sempre.


Sequer me atrevo a tentar justificar porque devem ler esta obra, ou, ao menos, pensar sobre o assunto. Caitlin faz isso muito bem, e gostaria que aqueles que ainda não leram a obra dessem uma chance ao Confissões do Crematório. Até porque é um livro que traz informações interessantes e até mesmo contextualiza e compara diferentes épocas e como a morte é tratada nelas. Além de deixar claro que, na morte, não há distinção.

“As pessoas no frigorífico provavelmente não andariam juntas no mundo dos vivos. O homem negro idoso com infarto do miocárdio, a mãe branca de meia-idade com câncer de ovário, o jovem hispânico que levou um tiro a poucos quarteirões do crematório. A morte os levou até ali para uma espécie de reunião das Nações Unidas, uma discussão em mesa redonda sobre a não existência.” (DOUGHTY, 2016, p. 28).

Um dos pontos que muito me agradou no livro e que não posso deixar de mencionar é que a autora faz várias referências. Às vezes, é só uma menção a um nome ou coisa pequena, mas mostra que ela tem bastante leitura. Particularmente, me encantei ao ler a parte em que ela menciona A pequena sereia, e mostra a diferença entre a versão da Disney e a original de Hans Christian Andersen. O que isso tem a ver com morte? Construção histórico-social. Quem conhece as duas versões entende do que Caitlin menciona e do que estou falando. Desde que li o conto em 2015, fiquei um tanto cismada com essa diferença gritante – e por isso, também, que me encantei lendo a fala dela –, porque o que pela Disney é uma história de amor e com um final lindo e feliz, na história do Andersen, não o é. Enquanto no conto se tem uma realidade mais brutal, tem-se uma realidade mascarada no filme. Não há problema nisso, claro, desde que não seja a única coisa com que as crianças tenham contato; como os filmes da Disney, por exemplo, apesar de nos últimos anos estarem trazendo questões e personagens um tanto diferentes. Isso implica na forma como a criança verá o mundo; o que ela espera dele. Se esperará um conto de fadas, ou saberá que nem sempre tudo tem seu final feliz. Ambos terminando com a morte.

“Expor uma criança pequena às realidades do amor e da morte é bem menos perigoso do que expô-la à mentira do final feliz.” (DOUGHTY, 2016, p. 149-150).

Por fim, não prolongando mais, um pequeno comentário quanto à edição que li. Primeiro que tem fitinha! (Adoro isso). O livro é de capa dura, com várias folhas pretinhas bonitinhas e até umas ilustrações no começo e no fim. Infelizmente, tirando o fato de que achei a capa “cheia” demais e que podia ter um pouco menos de informações e detalhes, encontrei muitos errinhos de revisão. O que me decepcionou bastante mesmo, principalmente porque este é o quarto livro que leio da editora e encontrei esse ‘problema’ em todos. O que é um tanto curioso, pois não possuem os mesmos revisores – pelo que reparei nos nomes. Ainda espero ler um livro da DarkSide sem erros. Claro, não digo que o livro precisa ser perfeito, e nem digo que revisores o são. Pela minha pouca experiência revisando, sei que é normal passar uma coisinha ou outra; mas quando os erros são muitos não dá para não se decepcionar um pouco. Enfim, mesmo com isso, a leitura é muito válida e vale tanto a pena que quase deveria ser obrigatória.

“Aceitar a morte não quer dizer que você não vai ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que você vai ser capaz de se concentrar na sua dor, sem o peso de questões existenciais maiores como ‘Por que as pessoas morrem?’ e ‘Por que isso está acontecendo comigo?’. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo com todo mundo.” (DOUGHTY, 2016, p. 232).


DOUGHTY, Caitlin. Confissões do crematório: lições para toda a vida. Tradução de Regiane Winarski. Rio de Janeiro: DarkSide, 2016. 256 p.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Memórias do subsolo, de Fiódor M. Dostoiévski

“Mas como sabeis que o homem não apenas pode, mas deve ser assim transformado? De que concluís que à vontade humana é tão indispensavelmente necessário corrigir-se? Numa palavra, como sabeis que uma tal correção realmente trará vantagem ao homem?” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 45).

Desde janeiro de 2016 que estou um tanto que curiosa ou encanta com a Literatura russa. Nesse ano, tive a oportunidade de ler obras de Dostoiévski, Tolstói, Gógol e Tchekhov. Embora eu admita que, sinceramente, sei pouquíssimo sobre a Literatura russa e ainda tenho muito para ler, mesmo sem entender a profundidade dessas obras, posso afirmar que são esplêndidas. As narrativas, o teor emocional, os personagens, as críticas. É um tanto cativante. Recentemente, aliás, meio que recomendei tanto uma obra russa que certa pessoa começou a lê-la e, não por caso, está adorando a leitura. Ao mesmo tempo, consigo ver que há um certo receio alheio em ler obras russas e clássicas, seja pelo desconhecimento ou qualquer outro motivo. E, dependendo de por qual obra comecem, talvez pareça um tanto "pesado" mesmo. Por isso, decidi compartilhar um pouco da minha leitura de uma obra de Dostoiévski, Memórias do subsolo. Li este livro para a Maratona Literária do IBL, em dezembro, na categoria "clássico". De início, a leitura me soou bem arrastada; eu não estava num momento tranquilo para ler algo tão 'feroz'. Não pude evitar de me questionar por que não estava aproveitando uma leitura de um autor tão bom. Acabei largando o livro por uns dois dias antes de retomar a leitura e, finalmente, conseguir aproveitar o restante da leitura. Devo admitir que a primeira parte do livro exige um pouco mais de fôlego, pois é um monólogo de um personagem que, de acordo com o tradutor Schnaiderman, transborda. Fico um tanto na dúvida se recomendaria esta obra para quem queira começar a ler Dostoiévski, dado que achei a primeira parte mais "densa" do que esperava, mas admito que ela deve, sim, ser lida em algum momento. 


Esta novela é dividida em duas partes: O subsolo e A propósito da neve molhada. Numa visão geral, pode-se dizer que a primeira parte é mais reflexiva, contemplando possíveis aspectos do ser humano, enquanto a segunda parte é mais voltada às memórias do narrador, em que se vê o protagonista em algumas situações pelas quais passou, o que permite uma imagem mais nítida, eu diria, dele. Embora a primeira parte seja mais densa e a segunda seja mais "tranquila", fora da primeira que marquei muitas citações incríveis. Acabei relendo O subsolo para escrever este texto, de fato não aproveitei esta parte na primeira leitura, e acho que a relerei futuramente, mais um vez  por enquanto, sinto que me falta mais bagagem.

Em O subsolo, vê-se um monólogo sobre o ser humano, diferenciando o homem comum, direto e das ações  se entendi esta parte, é claro  do homem do subsolo, como o protagonista  que diz viver nesse subsolo (não literalmente) há quarenta anos. Em suas falas, enquanto se dirige aos "senhores" com quem conversa  locutores imaginários, ao que parece –, além de expor essa diferença entre os homens, discorre sobre vingança, sobre as vontades do ser humano, o livre-arbítrio.

"O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade..." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 39).

Para o narrador, ao ser humano, parece mais que necessário o livre-arbítrio, que este não se sinta comandado por "forças maiores" ou "calendários"; aliás, parte disso chegou a me lembrar um pouco de ficção científica. Em Memórias do Subsolo, expor questões referentes ao ser humano como indivíduo e sociedade, entre seu lado racional e emocional, parece mais do que apenas um monólogo do homem do subsolo. Quase como um recado de que há uma base na nossa sociedade, que continua sendo utilizada e fortalecida e qualquer mudança pode acarretar ondulações imensas. Não é estranho observar que a raiva, a contenção e a vingança (contraponto com a justiça) apareçam tanto na obra, a partir das palavras e ações do narrador, que é um homem do subsolo. Ao ser humano, parece destacar o desejo de ter controle e não ser controlado; de poder dizer que tem a capacidade de escolher e tomar decisões. Mesmo que estas o prejudiquem.

"Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 41).

Não é recente o debate entre a razão e a emoção, mas ouso dizer que, embora parece um pouco óbvio depois de ler, admito que me impressionei com a frase acima quando entendi parte dela. Afinal, quando seguimos o lado racional não significa que estamos tomando a melhor escolha, dado que a nossa "razão" partirá de nossos conhecimentos e experiências, que podem não ser o suficiente em dadas situações para que seja feita a escolha certa. Nisso, parece interessante observar, mais em relação à segunda parte da novela, os "conflitos" pelos quais o narrador passa, tomando decisões das quais seu lado racional poderia não concordar, e das quais seu emocional o impelia a agir. Só parece plausível pensar, após essa leitura, que nem racional nem emocional podem estar certos, tendo-se que medir a escolha a partir de ambos.

“Fica ainda uma pergunta: para que, em suma, quero eu escrever? Se não é para um público, não se poderia recordar tudo mentalmente, sem lançar mão do papel?” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 54).

Pensando sobre o que li nesta novela, e uma meia resenha que li  porque não cheguei a terminar de lê-la –, parece-me inútil estar até mesmo escrevendo essas minhas frases fracas sobre a obra. E, junto a isso, uma reflexão acerca da situação acima. Para o narrador, não havia um público, ele o "criou" para que soasse mais "solene"; ou mesmo porque o ato de escrever possa ajudá-lo a libertar memórias que o pressionam. Não muito longe da ideia de se livrar de memórias fortes, imagino que escrever sobre uma obra seja uma forma de se pensar sobre ela, em seus pontos bons e ruins, antes de se iniciar uma nova leitura; um modo de pensar, como o é para a Sumire de Minha Querida Sputnik (Haruki Murakami). Isso, aliás, me fez pensar neste blog, para que eu o criei, se podia escrever sobre minhas leituras e simplesmente deixar numa pasta do computador; talvez pela motivação. Ou só porque espero que, caso alguém leia um de meus textos, sinta-se convidado a ler algum desses livros incríveis. Só espero que meus textos (os positivos) não acabem fazendo o contrário; ou que seja decepcionante lê-los. Apesar disso, retomo à obra, e recomendo a leitura, talvez não como "iniciação" a Dostoiévski ou aos russos, mas fica a recomendação futura, de qualquer modo. 


"Imaginava, para mim mesmo, aventuras e inventava uma vida,
para viver ao menos de algum modo." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 39).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2009. 152 p.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Projetos: Viajante Literária e Lendo Clássicos

Leituras e Gatices
Cada indivíduo tem uma história, de certa forma, única. Cuja base é, em parte, formada pelo ambiente e cultura em que está inserido. O que torna cada autor, de certo modo, único, não entrando aqui a "habilidade" que o autor tem com a escrita ou a "qualidade" da obra; além de considerar, por outro lado, que o autor não é o sujeito num todo, mas parte dele. Não muito longe desse raciocínio, volto a dizer o que comentei com o texto sobre No Mar, sobre ter autores incríveis em cada canto do mundo e que quero conhecer ao menos alguns deles. Talvez não por acaso que participarei de um projeto sobre essas diferentes literaturas ao redor do mundo. ✌

O Projeto Viajante literária foi criado pela Helena do Leituras e Gatices. Basicamente, ela se propõe a ler doze livros de nacionalidades diferentes ao longo do ano, um por mês. Os locais escolhidos e as respectivas obras seguem abaixo. Só troquei uns dois títulos por outros que eu já tenho na minha estante, pois estou tentando diminuir a quantidade de não lidos (que por pouco não é maior que a quantidade de lidos). Assim como a Helena, não seguirei necessariamente esta ordem. Boa parte dos autores eu já conhecia e até li algumas obras, como Murakami e Jostein Gaarder, mas cada obra pode ser uma novidade.

1. França: Madame Bovary - Gustave Flaubert
2. Ucrânia: O mestre e a margarida - Mikhail Bulgákov
3. Portugal: A desumanização - Valter Hugo Mãe
4. Rússia: Anna Kariênina - Liev Tolstói
5. Nigéria: Americanah - Chimamanda Ngozi Adichie
6. Noruega: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken - Jostein Gaarder
7. Japão: Dance Dance Dance - Haruki Murakami
8. Alemanha: A violoncelista - Michael Krüger
9. Espanha: A sombra do vento - Carlos Ruiz Zafón
10. Irlanda: Drácula - Bram Stocker
11. República Tcheca: O processo - Franz Kafka
12. Colômbia: O amor nos tempos do cólera - Gabriel Garcia Márquez

Bom, às vezes só precisamos de um empurrãozinho ou de uma força exterior para fazer algo que pretendíamos ou queríamos; como ler livros de nacionalidades diferentes ou ler mais clássicos. Aliás, é sobre isso o outro projeto que participarei: Lendo Clássicos, este sendo da Tainan, do Eu Curto Literatura. Este projeto consiste em ler doze clássicos; como a lista acima já possui um bom número deles, no decorrer do ano acrescentarei mais uns títulos.

Sinceramente, adorei os projetos, e tentarei fazer ao menos dez dessas leituras. Não deixando de mencionar, claro, que os projetos unem autores incríveis. (💙)

É, isso. Boas leituras.