quarta-feira, 5 de abril de 2017

O pianista, de Wladisław Szpilman

É curioso como os textos que acompanham uma obra (e não são escritos pelo autor) podem trazer um "ar" diferente e lhe fazer entrar na leitura de uma forma tão diversa. Com esses textos eu me refiro aos prefácios, às notas de tradução ou outros textos afins. Na dúvida (tão comum) de que obra ler, peguei o livro O pianista na mão e o folheei, meio aleatoriamente mesmo (e notei, infelizmente, que o meu exemplar veio com uma "falhinha" na ponta de uma das páginas; felizmente, não prejudica a leitura), até que decidi ler a primeira página e me deparei com um texto, intitulado Alguns comentários do tradutor, escrito por Tomasz Barcinski, o tradutor dessa obra, claro (e, isso é legal, diretamente do polonês!). Apesar de que só a primeira frase já havia me convencido a lê-lo, o texto num todo é muito interessante, até por abordar questões de tradução.

Essa obra é impressionante, e sem dúvidas a recomendo muitíssimo! ❤
Claro que é triste, trágico, e incomoda saber todas essas coisas que já aconteceram, mas saber uma parte do que foi é uma forma de conhecimento, de nos mostrar o outro lado das ações humanas, e, quem sabe, não repetir parte do lado negativo dessa história. (É de propósito os livros no fundo, sim. São todos sobre guerras.) 

Em 1939, teve início a Segunda Guerra Mundial, que se prolongou por alguns anos  de muita violência, ódio, preconceito, medo –, até 1945. Apesar de terem sido poucos anos, as marcas deixadas por essa guerra foram imensas, houve muita violência, muito ódio/preconceito foi propagado, milhares foram mortos – sem distinção entre criança, jovem, adulto ou idoso; homem ou mulher –, muitas famílias foram dizimadas e destruídas; aos que sobreviveram, não é fácil compreender como deve ter sido realmente sobreviver a isso, e vários relatos mostram que nem sempre é algo bom, feliz. O sofrimento pelo qual passaram e continuariam passando é grande demais para ser medido, principalmente em poucas palavras. Nisso é importante considerar que o clima tão devastador, horrendo e violento não poderia simplesmente ser "apagado" e a vida voltar ao normal; ao que parece levou muito tempo e muito mais sofrimento até que a vida de todos que foram arrasados por esse período pudesse "voltar aos eixos". Mesmo sabendo que não se pode apagar o passado – porque isso não é 1984 –, as pessoas precisam juntar o que restou de suas vidas e erguê-las ao máximo possível de uma nova rotina, até chegar a um "comum". Sobre esse período pós-guerra, aliás, é interessante ler o texto referente à obra Continente Selvagem, que foi lançada pela Zahar.

"Isso já não era brincadeira: os pisos e as paredes dos abrigos vibravam, enquanto bombas caíam por toda a cidade e certamente cada uma delas, tal como uma bala de roleta-russa, ao acertar uma casa em cujo porão abrigava-se alguém, significava a morte." (SZPILMAN, 2008, p. 24).

Nesse período, alemães expuseram uma grande variedade de violência contra os judeus, matando-os aos milhares, por vezes só para propagar um clima de tensão e de superioridade. Nunca entenderei essas pessoas. Foi um período que, posso estar enganada, uniu tanto o mau radical, que ignora totalmente o outro como ser humano, quanto o mau banal, aquele que "simplesmente" opta por não pensar*. Porque a guerra não tem um lado só, uma perspectiva apenas. E mesmo julgar alguém nesse meio não é algo fácil ou simples. Ao mesmo tempo em que havia soldados que matavam e utilizavam da violência como se estivessem fazendo algo pela própria vontade deles, acreditando estarem completamente corretos, houve também quem não concordasse com o que estava acontecendo, mas não sabia ou não tinha coragem de se rebelar e agir de modo diferente; porque a desordem, nesses casos, pode facilmente ser punida com morte. É realmente uma questão complicada... Que ficará em aberto, porque não tenho "bagagem" para ir além disso.

Na obra, vemos a visão de Szpilman, um judeu, sobre esses anos de guerra, desde a invasão da Polônia até o momento da "derrota" dos alemães. Pelo olhar de Szpilman fica fácil perceber a mudança drástica que a força e a invasão alemã causaram à Polônia, contrastando os momentos pré e pós-guerra. De uma cidade movimentada a um deserto; de uma vida confortável ao risco de morrer por inanição.  as bombas já causaram uma destruição imensa, e se engana quem ousar pensar que isso era o pior. Quando Varsóvia caiu nas mãos dos "arianos", muitos judeus foram mandados para um bairro criado especialmente para eles – isolando-os. Ergueu-se, então, muros delimitando uma parte da cidade. O apartamento de Szpilman e sua família, de certo modo por sorte, já que não precisaram procurar outro espaço para morar, ficava dentro dos limites do que foi chamado de "gueto". Isolados por esses muros e pelo patrulhamento dos alemães, o gueto acabou sitiando milhares de judeus, das mais diversas classes sociais etc. Uma "minicidade", em parte assolada pela fome, que não tinha a perspectiva de uma paz tão cedo; episódios chocantes e desumanos são presenciados. Uma reflexão de Szpilman sobre liberdade em meio a isso é completamente surpreendente e acredito ser difícil alguém terminar essa leitura sem um pingo de tristeza. Do outro lado do muro, os alemães se estabeleciam em Varsóvia e se ocupavam em manter os judeus sob extrema tensão e perigo de morte. Como o autor expõe, havia, inclusive, certas regras que, se quebradas, corria pena de morte; como o "toque de recolher", um horário no qual não podiam mais andar pelas ruas, pois, se pegos, poderiam facilmente ser mortos. Havia, inclusive, as łapanka. E frequentemente, por qualquer pequeno motivo ou por motivo algum, os alemães fuzilavam os judeus na rua. Essas ações, que demonstram uma violência e ignorância desnecessárias, principalmente se vistas pelo olhar de agora, são descritas em algumas cenas fortes, tristes e que sensibilizam muito.

Achei um pouco extenso para colocar como citação, então bati foto dessa parte, que acho importante mencionar. Faz parte da nota do tradutor (já disse que achei essa nota incrível? ❤) Considerando o contexto, aliás, faz muito sentido não ser traduzido, não é?

Umas das cenas mais tocantes do livro, aliás, é o momento em que ele se separa de sua família. Aos poucos já se sabe que isso vai acontecer, por pequenos trechinhos que Szpilman expõe, naquela sintonia de escrever sobre o passado, na tristeza de saber que aquela foi a última vez ou que seria diferente se tivessem tido mais tempo. Enfim, é um relato de um judeu na guerra, podem imaginar o que pode conter aí.

"Outras crianças tentavam sensibilizar o coração das pessoas dizendo: 'Estamos, realmente, com muita, muita fome. Não comemos há muito tempo. Deem-nos um pedaço de pão, ou, pelo menos, uma batata ou uma cebola, para que possamos sobreviver até amanhã.' 
Mas quase ninguém tinha uma mísera cebola, e mesmo se alguém tivesse, seu coração não mandaria cedê-la. A guerra havia transformado os corações em pedra." (SZPILMAN, 2008, p. 75).

Sobre o relato de Szpilman, vale ressaltar, ainda, dois pontos. Primeiro, a respeito do título. Ele era um pianista, e trabalhava numa rádio. No decorrer das páginas vamos vendo que ele realmente leva isso a sério e até parece ser um de seus impulsos para seguir em frente; em alguns momentos, principalmente nos primeiros anos da guerra, ele se preocupa com sua carreira após a guerra, e tenta proteger suas mãos para que não precise desistir do piano para sempre. Pode parecer um pouco bobo, mas é uma atitude bonita; a música para ele, parece, era mais do que notas uma atrás da outra. Um ponto sutil, mas com certo encanto, refere-se a última música que tocou antes de a rádio em que trabalhava "fechar" por causa da guerra. A mesma música, Noctune No. 20, de Chopin, fora tocada quando esse período estava terminando, o que seria o "fim" da guerra.

O segundo ponto refere-se à escrita de Szpilman, e, quanto a isso, jamais falarei melhor do que Wolf Biermann, no epílogo do livro. Portanto, segue as palavras dele:

"[...] embora este diário tivesse sido escrito 'a quente', pois surgiu quando as ruínas ainda fumegavam e ainda ardiam as cinzas da Segunda Guerra Mundial, a linguagem usada por Wladysław Szpilman é, surpreendentemente, serena. O autor descreveu tudo por que acabara de passar com um distanciamento quase melancólico. Tenho a impressão que ele ainda não havia voltado a si totalmente depois da viagem por círculos infernais e relata os fatos como se tivessem sido presenciados por outra pessoa; por alguém em quem ele se havia transformado quando a Polônia foi ocupada pelos alemães." (Wolf Biermann, no epílogo Uma ponte entre Wladyslaw Szpilman e Wilm Hosenfeld)

A obra é pequena, pode ser lida em poucos dias, mesmo com intervalos no meio, mas mostra ter um peso imenso, um pedaço de uma história que mostra muitas outras. Histórias que se intercalam, se sobrepõem, se respeitam ou se aniquilam. Pessoas que pensam, que amam e que vivem; pessoas que simplesmente seguiam. Judeus e alemães, apesar de serem definições fortes e marcadas por suas histórias, não podem ser considerados como rótulos. Porque são só isso; as pessoas, por 'n' motivos, veem mais do que há. Infelizmente, ainda é assim. É um círculo que talvez não tenha fim, só muda a intensidade.

Enfim, já não bastasse o incrível relato de Szpilman, ao final da obra somos apresentados a uma parte adicional, composta de fragmentos de cartas do alemão Wilm Hosenfeld. Sem saber a respeito dele, não é curioso ter textos de um alemão num livro de um judeu que sofreu por causa dos alemães? Pois é, é surpreendente: o conteúdo é incrível!

"Tudo leva a crer que a humanidade está condenada a fazer mais mal do que bem. O amor ao próximo é um dos maiores ideais sobre a terra." (W. H., em 26 de junho de 1942).

"Todos os seres humanos têm dentro de si maldade e instintos animais que afloram quando não são coibidos. Sim, é preciso ter os mais baixos instintos para perpetrar esses homicídios entre os judeus e os poloneses." (W.H., em 13 de agosto de 1942).

"Os mentirosos e falsários terão que desaparecer e perder o seu poder ditatorial para que a dignidade possa voltar a reinar entre os homens." (W.H., em 21 de agosto de 1942).

Por fim, e terminarei o texto com uma citação, queria mostrar que até mesmo o aspecto religioso aparece no texto de Hosenfeld. Sabem aquela questão de "por que Deus permitiu isso?"? Imaginem o quanto ela não deve ter surgido nesses momentos! E o quanto não está por trás dela, não é? Não precisam ser grandes eventos, aliás, para que ela surja, mesmo quando é algo menor e regional, uma morte isolada, ela aparece. Não sou religiosa, mas mesmo assim gostei bastante de pensar a respeito – sobre nosso livre arbítrio e o que fazemos com ele. Descobri recentemente, aliás, que um filósofo, ou algo assim, há muitos anos, veio em defesa e expôs algo que perpassa no discurso de W. Hosenfeld.

"Por que Deus permitiu esta guerra terrível com as suas incontáveis vítimas? Refiro-me aos desumanos ataques aéreos, o pavor incutido na inocente população civil, as sevícias cometidas nos campos de concentração e o assassinato de centenas de milhares de judeus. Será que Deus é culpado? Por que não intervém, por que permite que tudo isso aconteça? São perguntas que podem ser feitas, mas não podem ser respondidas. A saída mais fácil é a de tentar jogar a culpa nos outros. Deus permite a maldade porque foram os homens que a escolheram; mas agora, graças à maldade e à imperfeição humanas, hão de sentir os infortúnios que cairão sobre eles. Nada fizemos para impedir a ascensão do nazismo e traímos os nossos próprios ideais - os ideais de liberdade individual, da democracia e da escolha religiosa" (W.H., em 6 de julho de 1943).

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* Sobre isso, recomendo a leitura do texto A propósito da problemática do mau em Hannah Arendt, de Odilio Alves Aguiar. O texto está disponível neste link. Não é um texto muito fácil de ler, e eu admito não ter entendido muito, mas a leitura vale a pena para os interessados. Inclusive participei de uma aula em que discutiam esse texto e foi bem interessante. Durante o debate foi tocado bastante no mau banal e em como as pessoas, em momentos de guerra e semelhantes, são capazes de matar sem remorso etc. Enfim, vale a pena ler.

SZPILMAN, Wladisław. O pianista. Tradução de Tomasz Barcinski. 2. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. 224 p.

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