quarta-feira, 19 de abril de 2017

Lucíola, de José de Alencar

Entre clássicos e contemporâneos, parece haver uma distinção um tanto grande, inclusive quando se trata de escolha de obras para o trabalho em sala de aula ou leituras para vestibulares – para estas, inclusive, já existe inúmeros textos abordando os pontos principais da obra, seu contexto histórico, perguntas e respostas de vestibulares já passados e até edições de livros que acompanham, ao final, algumas destas questões, além de textos complementares sobre autor e obra, e até guias de leitura para serem usados em sala de aula. Algumas dessas obras clássicas, conhecidas principalmente por caírem como conteúdo de vestibular, às vezes se propagam e exigem uma certa leitura obrigatória; sendo este um dos fatos pelos quais os estudantes procuram cada vez mais esses textos de apoio que dizem praticamente tudo sobre a obra. Apesar de alguns pontos negativos, não se pode negar que essa leitura obrigatória amplia o alcance da obra e propicia cada vez mais o contato com a leitura. Tanto se diz e se fala, que a obra quase tem uma análise completa pelos inúmeros sites da internet. Seja sobre os aspectos principais, seja sobre a leitura em si. Acaba que comentar esses textos se torna uma tarefa complicada; porque muito (ou quase tudo) já foi dito, e o que não foi é muito provável que seja algo muito específico ou referente a uma experiência de leitura – que envolve mais o leitor do que a obra em si. A mim, isso soa como uma pequena barreira, porque obras assim, clássicas, principalmente se são nacionais e bem-conhecidas, de tão comentadas, parecem que não necessitam de mais um texto repleto dos mesmos pontos de qualquer outro, além de que minha visão limitada nada tem a acrescentar. Principalmente se leio a obra por prazer, distração, e não estudo.

Partindo disso, porém, acabo por cair num beco sem saída, pois todas as obras – ou quase todas – são bastante lidas e comentadas, mesmo as que acabaram de ser lançadas. O que faz com que, nessa linha de pensamento, não faria sentido eu escrever sobre qualquer obra que fosse. Um tanto dramático, talvez? É possível. E ao mesmo tempo pode ter uma outra linha de pensamento, em que "não se está nem aí", que simplesmente se escreve um texto, sem nada a acrescentar e o joga por aí; alguém perderá tempo lendo. Não há certo ou errado. Até acho que já comentei aqui a respeito disso, porque cada vez mais parece que discorrer sobre uma obra se torna sem sentido, se, para a pessoa que escreve, não houver um outro motivo ali incluído. Digo, às vezes só me sinto satisfeita se coloco para fora o que penso de uma leitura que concluí; e esse é um dos meus motivos para escrever. Outro motivo meu é que não quero perder a prática da escrita, porque sei que ela é, mais do que talento ou qualquer coisa que possam dizer, uma questão de emoção e prática. Também considero nisso algo que aprendi na graduação: para se ensinar bem alguém a ler, precisa-se ler. O mesmo também pode estar ligado à escrita. Não que seja obrigatório, mas conhecer o processo na própria prática te permite um conhecimento que livros teóricos podem não te dar nunca. Enfim, cada pessoa tem seu motivo. Mesmo que o texto escrito só venha a se tornar mais um grão numa praia de textos.

Isto foi uma espécie de desabafo, talvez. Bem, junto a isso, e resolvida a levar a cabo as propostas que me impus com este blog (que tem ênfase nos livros clássicos), eis que resolvi escrever meu texto com minha visão limitada de Lucíola – apesar de soar repetitivo, não quero deixá-lo incompleto para quem ainda não conheça a obra –, e dizer o motivo pelo qual eu recomendo a obra, mas não a edição que eu li. Primeiramente, como cheguei a tal edição que li: devido às disciplinas de Literatura Brasileira da faculdade, já havia ouvido falar muito de José de Alencar (1829-1877) – apesar de eu sempre confundir o nome –, e uma colega – nesse momento infelizmente não lembro exatamente quem, já faz um tempo...  me disse que havia adorado Lucíola. A isso somou-se o fato de que recentemente comentaram essa obra comigo; bom, por que não ler, então, já que eu estava realmente querendo um livro pequeno? Pesquisando a obra online cismei com a edição de capa vermelha da Martin Claret; comprei-a. Infelizmente, só quando fui ler é que reparei nas margens pequenas. 💦 Um pequeno empecilho que me faz não recomendar essa linda edição; porque a tal margem fez com que eu precisasse "forçar" um pouco o livro para poder lê-lo e eis o que aconteceu com a capa:

Essa "linha" esbranquiçada do lado esquerdo do livro se formou porque eu talvez ficasse abrindo demais o livro; mas ou eu fazia isso ou teria dificuldades para ler. *sigh*
Essa é a margem que me incomodou um bocado. Geralmente não se precisa abrir muito para poder ler, mas se observar bem, sem "esticar" o livro, mal dá para ler. O lado direito está mais direitinho, o problema de fato é com esse esquerdo... 💧 

Bem, a obra é narrada em primeira pessoa por Paulo (olha só, quase meu xará!), um homem que, ao que sabemos, escreve cartas a uma senhora, e a história que lhe conta resulta em 21 capítulos – imagino que cada capítulo pudesse ser uma das cartas que ela diz ter recebido; mas, não tenho certeza. É esta senhora que reúne tal texto e lhe põe um título, Lucíola, justificando-o como um nome de inseto, que mesmo em meio a uma obscuridade total consegue iluminar-se. Este nome, como ela logo explica, parece sintetizar a essência da mulher que ele lhe retrata. A narrativa de Paulo, por sinal, surge no intuito de explicar à senhora o porque, em seu discurso, dispunha-se a ter tanta indulgência, clemência, com pessoas infelizes que são mal vistas pela sociedade; e acaba por lhe descrever "um perfil de mulher" (p. 23), que foi, para ele, uma grande marca e, também, certa influência. Em seu relato, viemos a conhecer sua história e a de Lúcia, uma das cortesãs mais 'almejadas', desejadas, no Rio de Janeiro, sendo dela o perfil mencionado. Aliás, antes de ler a obra, imaginava que seu nome seria Lucíola, mas vim a descobrir depois, no Recanto das Letras, que Lúcia é seu diminutivo, e significa luz e brilho; assim como Lúcifer. Interessante, não? Bem, Paulo a conhece logo no primeiro dia em que chega ao Rio de Janeiro – tendo vindo de Pernambuco –, e se encanta com sua imensa beleza, sem saber qual era sua 'posição' na sociedade; embora não muito diferente de hoje em dia, naquela época era uma imensa desonra se sujeitar a esta situação, considerada indigna e que lhe dá uma reputação manchada para sempre. A partir daí decorre-se a história de seu encantamento, e pode-se dizer, acho, amor pela moça; e vice-versa.

"De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. Às sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo e colorido de límpidos contornos." (p. 24).

Quanto ao enredo, resta pouco a dizer, dado ser, basicamente, a história dos dois. Encantado com Lúcia, Paulo busca se aproximar dela, embora lhe digam para, de certa forma, tomar cuidado, manter um distanciamento, enquanto conhece a Corte e o Rio de Janeiro em si. Porém, é a ingenuidade dele nessa nova cidade e seus hábitos que o faz "não desistir", o faz querer ainda mais conhecê-la e ser amante dela. Então decorrem encontros e desencontros etc.

Quanto à edição que eu li – da Martin Claret, que faz parte da coleção A obra-prima de cada autor – comenta sobre a obra, inclusive dizendo ser importante considerar o contexto da obra e o fato de que as mulheres retratadas não são mulheres reais, e sim idealizadas. Isso realmente é importante. Porque nesse romantismo, a idealização põe a mulher numa espécie de pedestal – e de lá meio que a mulher não faz coisa alguma; inclusive tem toda a questão de ser 'pura' e 'educada' –, a ser admirada e almejada. Lúcia, considerada um tanto excêntrica e cheia de caprichos, apesar de caminhar em direção a essa idealização, por meio do amor de Paulo – ah, a romantização... o que o amor não faz, não é? –, já começa longe de ser 'pura' e 'casta', afinal, embora cortesã possa ser uma palavra que soe bonitinha, ela vive numa vida devassa, vendendo o próprio corpo. Aliás, é interessante ver que ela se mostra uma personagem complexa e leva a uma dualidade questionadora – cuja explicação é dada mais ao final da história, lhe proporcionando ainda mais, a meu ver, um papel romantizado, de moça idealizada –, às vezes sendo descrita com um ar angelical, e, às vezes, com uma aura diabólica/maliciosa. É da descrição dela, de seus atos e o poder da sociedade sobre ambos que surgem diversos temas e críticas. A começar pelo 'poder' da sociedade de optar pela escolha alheia; a dizer o que é certo ou não. Exemplo seria o quão 'impura' é considerada uma cortesã, capaz de manchar a honra de famílias 'decentes'.

"Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives." (p. 77).

Outros temas da obra, além da prostituição e devassidão da Corte do século XIX, são a dualidade entre corpo e alma, amor físico e espirital e os preconceitos da época. A análise de Lucíola no site Guia do Estudante expõe bem esses pontos; e a resenha do site Recanto das Letras também traz uma visão bem detalhada da obra e da figura de Lúcia. Recomendo ambos os textos, caso se interessem (mas aviso, a quem isso possa desagradar, que podem ter spoilers). Inclusive o texto do Guia do Estudante comenta o fato do não distanciamento do narrador com a história, mesmo estando contando-a alguns anos após sua história com Lúcia ter terminado – o que se torna muito mais evidente e considerável quando se sabe como essa história termina. Digo, o narrador expõe os fatos como se os estivesse vivenciando, quase que no presente; mas sabe-se que tem um distanciamento, por comentários seus, em vagas análises dos acontecimentos, dirigidos à senhora.

"Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, à página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido." (p. 38).

Disso acho interessante mencionar o estilo do autor; e só após ter comentado com a Helena foi que realmente compreendi que ler uma tradução de clássico nunca é a mesma experiência de ler um clássico no original – e aqui falo de textos em língua portuguesa, porque, né... –, dado que grande parte das traduções, mesmo adaptando a linguagem e tornando-a mais próxima de como seria àquela época, não será e não proporcionará uma experiência de leitura de textos da época na língua originalmente escrita. De início, admito que o estilo de Alencar me surpreendeu um pouco, talvez por fazer tanto tempo que não lia algo parecido, cujas frases parecem utilizar de ordens diferentes; aliás, até o uso das vírgulas me pareceu um tanto diferente (lendo ficava pensando como seria tirar ou colocar uma vírgula aqui e outra ali). Não sei se isso se deve ao fato de que José de Alencar, como menciona um dos textos complementares da edição, tentava se distanciar da linguagem utilizada por Portugal, mas foi interessante pensar depois que achei seu estilo bem distinto, um tanto diferente de Machado de Assis, outro autor do qual já li algumas obras. Esse estranhamento que tive ao início, porém, após a leitura de algumas páginas, foi sumindo ao passo que fui me acostumando ao estilo do autor, de modo que a leitura se tornou um tanto fluida.

"Sucede com as feridas d'alma o mesmo que às feridas do corpo; é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante." (p. 92).

Sobre a edição, apesar das horríveis margens pequenas – que não estão presentes dessa forma em outros volumes da mesma coleção –, é preciso dizer que os textos complementares são bem interessantes, tendo, inclusive, um guia de leitura e algumas questões de vestibular (com gabarito). Sobre o guia de leitura, admito que me senti uma má leitora ao ver que algumas das questões eu não saberia, e ainda não sei, responder. A pior para mim foi: "Em que momento se dá o clímax do enredo de Lucíola?" (p. 153). E eu sinceramente não sei; seria quando sabemos o que acontece com ela ou quando descobrimos sobre Maria da Glória? Ou é ou dois? Ou nenhuma dessas opções? 💦Se souberem, agradeço se me disserem.

Enfim, a obra é considerada um romance urbano e um retrato de uma sociedade, cujos aspectos, em parte, ainda aparecem atualmente. Um ponto particularmente curioso da história é ver essa idealização, a 'redenção' e o encontro com a paz somente por meio desse lado espiritual em contato com a natureza, com a purificação. Bem, mesmo idealizado, e que em alguns momentos eu realmente não compreendi algumas atitudes dos personagens, é uma leitura agradável e que vale a pena. ✌

"Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora." (p. 129).

ALENCAR, José de. Lucíola. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. 157 p. (Coleção a obra-prima de cada autor; 100).

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