quarta-feira, 19 de abril de 2017

Lucíola, de José de Alencar

Entre clássicos e contemporâneos, parece haver uma distinção um tanto grande, inclusive quando se trata de escolha de obras para o trabalho em sala de aula ou leituras para vestibulares – para estas, inclusive, já existe inúmeros textos abordando os pontos principais da obra, seu contexto histórico, perguntas e respostas de vestibulares já passados e até edições de livros que acompanham, ao final, algumas destas questões, além de textos complementares sobre autor e obra, e até guias de leitura para serem usados em sala de aula. Algumas dessas obras clássicas, conhecidas principalmente por caírem como conteúdo de vestibular, às vezes se propagam e exigem uma certa leitura obrigatória; sendo este um dos fatos pelos quais os estudantes procuram cada vez mais esses textos de apoio que dizem praticamente tudo sobre a obra. Apesar de alguns pontos negativos, não se pode negar que essa leitura obrigatória amplia o alcance da obra e propicia cada vez mais o contato com a leitura. Tanto se diz e se fala, que a obra quase tem uma análise completa pelos inúmeros sites da internet. Seja sobre os aspectos principais, seja sobre a leitura em si. Acaba que comentar esses textos se torna uma tarefa complicada; porque muito (ou quase tudo) já foi dito, e o que não foi é muito provável que seja algo muito específico ou referente a uma experiência de leitura – que envolve mais o leitor do que a obra em si. A mim, isso soa como uma pequena barreira, porque obras assim, clássicas, principalmente se são nacionais e bem-conhecidas, de tão comentadas, parecem que não necessitam de mais um texto repleto dos mesmos pontos de qualquer outro, além de que minha visão limitada nada tem a acrescentar. Principalmente se leio a obra por prazer, distração, e não estudo.

Partindo disso, porém, acabo por cair num beco sem saída, pois todas as obras – ou quase todas – são bastante lidas e comentadas, mesmo as que acabaram de ser lançadas. O que faz com que, nessa linha de pensamento, não faria sentido eu escrever sobre qualquer obra que fosse. Um tanto dramático, talvez? É possível. E ao mesmo tempo pode ter uma outra linha de pensamento, em que "não se está nem aí", que simplesmente se escreve um texto, sem nada a acrescentar e o joga por aí; alguém perderá tempo lendo. Não há certo ou errado. Até acho que já comentei aqui a respeito disso, porque cada vez mais parece que discorrer sobre uma obra se torna sem sentido, se, para a pessoa que escreve, não houver um outro motivo ali incluído. Digo, às vezes só me sinto satisfeita se coloco para fora o que penso de uma leitura que concluí; e esse é um dos meus motivos para escrever. Outro motivo meu é que não quero perder a prática da escrita, porque sei que ela é, mais do que talento ou qualquer coisa que possam dizer, uma questão de emoção e prática. Também considero nisso algo que aprendi na graduação: para se ensinar bem alguém a ler, precisa-se ler. O mesmo também pode estar ligado à escrita. Não que seja obrigatório, mas conhecer o processo na própria prática te permite um conhecimento que livros teóricos podem não te dar nunca. Enfim, cada pessoa tem seu motivo. Mesmo que o texto escrito só venha a se tornar mais um grão numa praia de textos.

Isto foi uma espécie de desabafo, talvez. Bem, junto a isso, e resolvida a levar a cabo as propostas que me impus com este blog (que tem ênfase nos livros clássicos), eis que resolvi escrever meu texto com minha visão limitada de Lucíola – apesar de soar repetitivo, não quero deixá-lo incompleto para quem ainda não conheça a obra –, e dizer o motivo pelo qual eu recomendo a obra, mas não a edição que eu li. Primeiramente, como cheguei a tal edição que li: devido às disciplinas de Literatura Brasileira da faculdade, já havia ouvido falar muito de José de Alencar (1829-1877) – apesar de eu sempre confundir o nome –, e uma colega – nesse momento infelizmente não lembro exatamente quem, já faz um tempo...  me disse que havia adorado Lucíola. A isso somou-se o fato de que recentemente comentaram essa obra comigo; bom, por que não ler, então, já que eu estava realmente querendo um livro pequeno? Pesquisando a obra online cismei com a edição de capa vermelha da Martin Claret; comprei-a. Infelizmente, só quando fui ler é que reparei nas margens pequenas. 💦 Um pequeno empecilho que me faz não recomendar essa linda edição; porque a tal margem fez com que eu precisasse "forçar" um pouco o livro para poder lê-lo e eis o que aconteceu com a capa:

Essa "linha" esbranquiçada do lado esquerdo do livro se formou porque eu talvez ficasse abrindo demais o livro; mas ou eu fazia isso ou teria dificuldades para ler. *sigh*
Essa é a margem que me incomodou um bocado. Geralmente não se precisa abrir muito para poder ler, mas se observar bem, sem "esticar" o livro, mal dá para ler. O lado direito está mais direitinho, o problema de fato é com esse esquerdo... 💧 

Bem, a obra é narrada em primeira pessoa por Paulo (olha só, quase meu xará!), um homem que, ao que sabemos, escreve cartas a uma senhora, e a história que lhe conta resulta em 21 capítulos – imagino que cada capítulo pudesse ser uma das cartas que ela diz ter recebido; mas, não tenho certeza. É esta senhora que reúne tal texto e lhe põe um título, Lucíola, justificando-o como um nome de inseto, que mesmo em meio a uma obscuridade total consegue iluminar-se. Este nome, como ela logo explica, parece sintetizar a essência da mulher que ele lhe retrata. A narrativa de Paulo, por sinal, surge no intuito de explicar à senhora o porque, em seu discurso, dispunha-se a ter tanta indulgência, clemência, com pessoas infelizes que são mal vistas pela sociedade; e acaba por lhe descrever "um perfil de mulher" (p. 23), que foi, para ele, uma grande marca e, também, certa influência. Em seu relato, viemos a conhecer sua história e a de Lúcia, uma das cortesãs mais 'almejadas', desejadas, no Rio de Janeiro, sendo dela o perfil mencionado. Aliás, antes de ler a obra, imaginava que seu nome seria Lucíola, mas vim a descobrir depois, no Recanto das Letras, que Lúcia é seu diminutivo, e significa luz e brilho; assim como Lúcifer. Interessante, não? Bem, Paulo a conhece logo no primeiro dia em que chega ao Rio de Janeiro – tendo vindo de Pernambuco –, e se encanta com sua imensa beleza, sem saber qual era sua 'posição' na sociedade; embora não muito diferente de hoje em dia, naquela época era uma imensa desonra se sujeitar a esta situação, considerada indigna e que lhe dá uma reputação manchada para sempre. A partir daí decorre-se a história de seu encantamento, e pode-se dizer, acho, amor pela moça; e vice-versa.

"De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. Às sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo e colorido de límpidos contornos." (p. 24).

Quanto ao enredo, resta pouco a dizer, dado ser, basicamente, a história dos dois. Encantado com Lúcia, Paulo busca se aproximar dela, embora lhe digam para, de certa forma, tomar cuidado, manter um distanciamento, enquanto conhece a Corte e o Rio de Janeiro em si. Porém, é a ingenuidade dele nessa nova cidade e seus hábitos que o faz "não desistir", o faz querer ainda mais conhecê-la e ser amante dela. Então decorrem encontros e desencontros etc.

Quanto à edição que eu li – da Martin Claret, que faz parte da coleção A obra-prima de cada autor – comenta sobre a obra, inclusive dizendo ser importante considerar o contexto da obra e o fato de que as mulheres retratadas não são mulheres reais, e sim idealizadas. Isso realmente é importante. Porque nesse romantismo, a idealização põe a mulher numa espécie de pedestal – e de lá meio que a mulher não faz coisa alguma; inclusive tem toda a questão de ser 'pura' e 'educada' –, a ser admirada e almejada. Lúcia, considerada um tanto excêntrica e cheia de caprichos, apesar de caminhar em direção a essa idealização, por meio do amor de Paulo – ah, a romantização... o que o amor não faz, não é? –, já começa longe de ser 'pura' e 'casta', afinal, embora cortesã possa ser uma palavra que soe bonitinha, ela vive numa vida devassa, vendendo o próprio corpo. Aliás, é interessante ver que ela se mostra uma personagem complexa e leva a uma dualidade questionadora – cuja explicação é dada mais ao final da história, lhe proporcionando ainda mais, a meu ver, um papel romantizado, de moça idealizada –, às vezes sendo descrita com um ar angelical, e, às vezes, com uma aura diabólica/maliciosa. É da descrição dela, de seus atos e o poder da sociedade sobre ambos que surgem diversos temas e críticas. A começar pelo 'poder' da sociedade de optar pela escolha alheia; a dizer o que é certo ou não. Exemplo seria o quão 'impura' é considerada uma cortesã, capaz de manchar a honra de famílias 'decentes'.

"Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives." (p. 77).

Outros temas da obra, além da prostituição e devassidão da Corte do século XIX, são a dualidade entre corpo e alma, amor físico e espirital e os preconceitos da época. A análise de Lucíola no site Guia do Estudante expõe bem esses pontos; e a resenha do site Recanto das Letras também traz uma visão bem detalhada da obra e da figura de Lúcia. Recomendo ambos os textos, caso se interessem (mas aviso, a quem isso possa desagradar, que podem ter spoilers). Inclusive o texto do Guia do Estudante comenta o fato do não distanciamento do narrador com a história, mesmo estando contando-a alguns anos após sua história com Lúcia ter terminado – o que se torna muito mais evidente e considerável quando se sabe como essa história termina. Digo, o narrador expõe os fatos como se os estivesse vivenciando, quase que no presente; mas sabe-se que tem um distanciamento, por comentários seus, em vagas análises dos acontecimentos, dirigidos à senhora.

"Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, à página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido." (p. 38).

Disso acho interessante mencionar o estilo do autor; e só após ter comentado com a Helena foi que realmente compreendi que ler uma tradução de clássico nunca é a mesma experiência de ler um clássico no original – e aqui falo de textos em língua portuguesa, porque, né... –, dado que grande parte das traduções, mesmo adaptando a linguagem e tornando-a mais próxima de como seria àquela época, não será e não proporcionará uma experiência de leitura de textos da época na língua originalmente escrita. De início, admito que o estilo de Alencar me surpreendeu um pouco, talvez por fazer tanto tempo que não lia algo parecido, cujas frases parecem utilizar de ordens diferentes; aliás, até o uso das vírgulas me pareceu um tanto diferente (lendo ficava pensando como seria tirar ou colocar uma vírgula aqui e outra ali). Não sei se isso se deve ao fato de que José de Alencar, como menciona um dos textos complementares da edição, tentava se distanciar da linguagem utilizada por Portugal, mas foi interessante pensar depois que achei seu estilo bem distinto, um tanto diferente de Machado de Assis, outro autor do qual já li algumas obras. Esse estranhamento que tive ao início, porém, após a leitura de algumas páginas, foi sumindo ao passo que fui me acostumando ao estilo do autor, de modo que a leitura se tornou um tanto fluida.

"Sucede com as feridas d'alma o mesmo que às feridas do corpo; é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante." (p. 92).

Sobre a edição, apesar das horríveis margens pequenas – que não estão presentes dessa forma em outros volumes da mesma coleção –, é preciso dizer que os textos complementares são bem interessantes, tendo, inclusive, um guia de leitura e algumas questões de vestibular (com gabarito). Sobre o guia de leitura, admito que me senti uma má leitora ao ver que algumas das questões eu não saberia, e ainda não sei, responder. A pior para mim foi: "Em que momento se dá o clímax do enredo de Lucíola?" (p. 153). E eu sinceramente não sei; seria quando sabemos o que acontece com ela ou quando descobrimos sobre Maria da Glória? Ou é ou dois? Ou nenhuma dessas opções? 💦Se souberem, agradeço se me disserem.

Enfim, a obra é considerada um romance urbano e um retrato de uma sociedade, cujos aspectos, em parte, ainda aparecem atualmente. Um ponto particularmente curioso da história é ver essa idealização, a 'redenção' e o encontro com a paz somente por meio desse lado espiritual em contato com a natureza, com a purificação. Bem, mesmo idealizado, e que em alguns momentos eu realmente não compreendi algumas atitudes dos personagens, é uma leitura agradável e que vale a pena. ✌

"Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora." (p. 129).

ALENCAR, José de. Lucíola. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. 157 p. (Coleção a obra-prima de cada autor; 100).

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Aos quatro ventos, de Ana Maria Machado

Para quem já costuma escrever, às vezes talvez nem pare para pensar tanto no assunto, mas para quem começa é sempre um mistério até encontrar o caminho e sua própria forma de escrita. A ambos, aliás, essa busca é incessante, pois todo texto é uma nova descoberta (de certa forma), sempre um algo novo a dizer. Dependendo do que se pretende, pelo gênero ou pela mensagem, tem-se que pensar em como ele será, quem o lerá. Se é um comentário, uma resenha, possui um público mais sério ou mais descontraído. Se pode escrever gírias, usar abreviações ou qualquer outro aspecto importante. Às vezes fazemos isso sem nem pensar, automaticamente. Numa conversa pelo WhatsApp, por exemplo, é um estilo; escrevendo um trabalho para a faculdade, é outro. E se for reparar em todos os pequenos detalhes, é uma observação que talvez não tenha fim. Porque a linguagem é isso, um infinito repleto de possibilidades.


Quando tomei Aos quatro ventos na mão, numa feira do livro em Criciúma, não imaginei que a história fosse valer tanto a pena; só queria conhecer a escrita de Ana Maria Machado. Um nome que vim a conhecer nas aulas de Literatura e que deixou um ar de que poderia ter muito mais a se conhecer dela. O livro ficou parado na prateleira por alguns meses até que, querendo ler um livro pequeno, o escolhi. Depois de O pianista (que virou favorito) não esperava grande coisa da próxima leitura; o que acabou sendo uma surpresa agradável. Principalmente porque, e isso pode sim ser preconceito, mas, convenhamos, algumas obras nos fazem pensar isso, é uma obra nacional. A única outra obra nacional que resenhei aqui, Pretérito Imperfeito, mostrou que esse preconceito tem que acabar, que não é só clássico nacional que vale a pena ser lido. Por sinal, não sei se A. M. M. é clássico, mas acho que não. Autora de mais de cem livros, de acordo com a orelha de Aos quatro ventos, ela já ganhou vários prêmios e mostrou que consegue criar uma história simples, mas repleta de pequenas informações que edificam a obra com uma contextualização impressionante.

"Incompetência é uma doença geral, que se alastrou por toda parte, de braços dados com a mediocridade que campeia e ocupa os postos de comando nos mais variados setores." (MACHADO, 2014, p. 111).

Datada da década de 90, a obra, aos poucos, traz elementos da época e alguns até mesmo anteriores, abordando questões como política, economia, e fatos históricos como a Ditadura e o acidente nuclear de Chernobyl de uma forma a dar à obra um momento histórico bem marcado, mas de modo sutil, sem ficar forçado ou superficial. Então, sim, a obra traz assuntos fortes, mas se engana se pensarem que a leitura é pesada. Bem pelo contrário. Ademais, outros elementos fazem com que saibamos que a história ocorre numa época mais delimitada – além da marcação de datas, claro –, como a menção à datilografia e ao uso de disquetes. Eu me lembro dos disquetes, parecia tão moderno...

Porém, mais do que a contextualização e a marcação de uma época, Aos quatro ventos é uma obra que representa a descoberta da escrita por um homem que não tinha ideia de quão prazeroso isso podia ser. Ao mesmo tempo, é também uma história de obsessão, de uma possível maldição e "de amores, que se manifestam pela paixão dos amantes, pela amizade que atravessa oceanos, pela palavra, pela vida e pela liberdade" (trecho da contracapa da obra). A história possui apenas dez capítulos (sim, bem pouquinho mesmo), e neles se intercalam dois narrados, sendo um em terceira pessoa, narrando os acontecimentos que envolvem a família de Guto, o protagonista, e a família da irmã de sua esposa Vanda (professora de Ciências), a Lélia (uma livreira ❤). São bem poucos personagens que realmente "aparecem" na história (só essas duas famílias, que são compostas, ambas, por um casal e um filho). Os outros personagens mencionados são decorrentes de lembranças, e em grande parte são decorrentes dos capítulos narrados em primeira pessoa por Guto, um empresário que descobre que escrever é quase que mágico. Por meio das reflexões dele surgem questões impressionantes, algumas das quais nunca havia parado para pensar, e apontam que a evolução da tecnologia pode, sim, ter influência na escrita  e isso na década de 90, imagina agora! Com internet, redes sociais, mil e uma coisinhas etc.

"Escrever em computador tem essas vantagens. É extremamente higiênico, não se guarda sujeira. Pode ser a escrita da dieta - corta gordura. Ou a escrita do acúmulo, evidente, se o freguês preferir ir acrescentando sem parar. Depende de quem usa.
    Será que alguém já estudou os efeitos do processador de textos na literatura contemporânea? Estudar mesmo, para valer. Se é que já existe uma certa distância para isso, talvez ainda seja prematuro.
     Mas é óbvio que existe uma relação íntima entre o desenvolvimento tecnológico e a evolução da linguagem artística. No caso da literatura, não tenho a menor ideia de como isso se processa, nunca tinha pensado nisso antes, nunca fui muito chegado nesse negócio de escrever." (p. 28).

Tudo isso começa, olha só, por causa da obsessão – quem quiser pode usar a palavra amor aqui – dele pela esposa. E, por alguns motivos, isso se torna um projeto de fim de ano da sua empresa, com todas aquelas questões ambientais, ecológicas etc., cujo foco é o beija-flor. O que explica esse bichinho fofinho na capa da obra (aliás, não achei a capa muito bonita não; bem mais simbólica que bonita), que acompanha os peixes-voadores (esses aparecem logo no primeiro capítulo e depois somem acho). Apesar de não ser um trabalho seu, ele acaba tomando a escrita do projeto para si, e, nisso, vem a sua descoberta viciante. Entusiasmado, começa, cada vez mais, a ocupar seu tempo com a escrita; inicialmente a mão, com os lápis, depois com o processador de textos (acho que é um computador, me corrijam, por favor). A cada dia que passa isso começa a absorvê-lo mais e mais. De início, sua esposa se encanta com a mudança, pois finalmente ela passou a ter uma certa liberdade que nem sabia que sentia falta. Seu marido possessivo, então, passou a deixá-la "de lado" para escrever.

"Tem que ter medo é de si mesmo. Do excesso de confiança. Do delírio de poder. Da obsessão." (p. 44).

Porém, conforme essa nova obsessão vai se alargando, Vanda começa a notar que não é uma obsessão saudável, que aos poucos o está fazendo se afastar do trabalho e dos amigos; da vida social num todo. Por um lado, pode-se notar como qualquer obsessão ou vício pode, se não controlado, se tornar isso, um empecilho, deixar a pessoa "cega". E pode ser uma das interpretações iniciais. Por outro lado, não dá para deixar de dizer que quem leva a escrita a sério, de verdade, pode acabar realmente tendo esses momentos de isolamento, de fuga completa do convívio social, e que escrever também serve como uma válvula de escape, um momento em que as emoções podem explodir em palavras escritas, ser, até mesmo, um alívio. As reflexões sobre escrita que podem ser feitas a partir da leitura dessa obra são várias e não convém mencionar tudo aqui (é muita coisa mesmo). Além disso, há outras coisas relacionadas que também aparecem, como ser leitor, e leitor de ficção.

"- É que ficção (principalmente quando é boa) dá às pessoas essa oportunidade única que é a de viver outras vidas - respondeu Lélia. - Estar em outras situações, outros ambientes, enfrentar outros dilemas que jamais se apresentariam iguais na própria vida do leitor, tomar decisões éticas cruciais, julgar os diversos lados de uma questão. E em segredo, sem testemunhas, com toda a liberdade para imaginar como quiser." (p. 115).

Enfim, apesar de toda a maravilha da obra, senti que algumas partes ficaram meio fracas, mas nada que faça a leitura não valer a pena; vale sim, recomendo! É uma obra rápida de ler, dois dias e puf, acabou. Gostaria de comentar sobre o final, mas talvez seja spoiler demais; refere-se a tal maldição ligada ao passado que a contracapa menciona. Quem sabe, com a leitura da obra, não descubram que maldição é essa? Fiquei bem surpresa, embora não sei se gostei ou não disso...


"Hoje eu sei que os homens são só uma poeira nesta casca do planeta, 
cisco que vai de um lado para o outro e mal arranha a superfície." (p. 31).

MACHADO, Ana Maria.  Aos quatro ventos. 3. ed. Rio de Janeiro: Obejtiva, 2014. 146 p.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O pianista, de Wladisław Szpilman

É curioso como os textos que acompanham uma obra (e não são escritos pelo autor) podem trazer um "ar" diferente e lhe fazer entrar na leitura de uma forma tão diversa. Com esses textos eu me refiro aos prefácios, às notas de tradução ou outros textos afins. Na dúvida (tão comum) de que obra ler, peguei o livro O pianista na mão e o folheei, meio aleatoriamente mesmo (e notei, infelizmente, que o meu exemplar veio com uma "falhinha" na ponta de uma das páginas; felizmente, não prejudica a leitura), até que decidi ler a primeira página e me deparei com um texto, intitulado Alguns comentários do tradutor, escrito por Tomasz Barcinski, o tradutor dessa obra, claro (e, isso é legal, diretamente do polonês!). Apesar de que só a primeira frase já havia me convencido a lê-lo, o texto num todo é muito interessante, até por abordar questões de tradução.

Essa obra é impressionante, e sem dúvidas a recomendo muitíssimo! ❤
Claro que é triste, trágico, e incomoda saber todas essas coisas que já aconteceram, mas saber uma parte do que foi é uma forma de conhecimento, de nos mostrar o outro lado das ações humanas, e, quem sabe, não repetir parte do lado negativo dessa história. (É de propósito os livros no fundo, sim. São todos sobre guerras.) 

Em 1939, teve início a Segunda Guerra Mundial, que se prolongou por alguns anos  de muita violência, ódio, preconceito, medo –, até 1945. Apesar de terem sido poucos anos, as marcas deixadas por essa guerra foram imensas, houve muita violência, muito ódio/preconceito foi propagado, milhares foram mortos – sem distinção entre criança, jovem, adulto ou idoso; homem ou mulher –, muitas famílias foram dizimadas e destruídas; aos que sobreviveram, não é fácil compreender como deve ter sido realmente sobreviver a isso, e vários relatos mostram que nem sempre é algo bom, feliz. O sofrimento pelo qual passaram e continuariam passando é grande demais para ser medido, principalmente em poucas palavras. Nisso é importante considerar que o clima tão devastador, horrendo e violento não poderia simplesmente ser "apagado" e a vida voltar ao normal; ao que parece levou muito tempo e muito mais sofrimento até que a vida de todos que foram arrasados por esse período pudesse "voltar aos eixos". Mesmo sabendo que não se pode apagar o passado – porque isso não é 1984 –, as pessoas precisam juntar o que restou de suas vidas e erguê-las ao máximo possível de uma nova rotina, até chegar a um "comum". Sobre esse período pós-guerra, aliás, é interessante ler o texto referente à obra Continente Selvagem, que foi lançada pela Zahar.

"Isso já não era brincadeira: os pisos e as paredes dos abrigos vibravam, enquanto bombas caíam por toda a cidade e certamente cada uma delas, tal como uma bala de roleta-russa, ao acertar uma casa em cujo porão abrigava-se alguém, significava a morte." (SZPILMAN, 2008, p. 24).

Nesse período, alemães expuseram uma grande variedade de violência contra os judeus, matando-os aos milhares, por vezes só para propagar um clima de tensão e de superioridade. Nunca entenderei essas pessoas. Foi um período que, posso estar enganada, uniu tanto o mau radical, que ignora totalmente o outro como ser humano, quanto o mau banal, aquele que "simplesmente" opta por não pensar*. Porque a guerra não tem um lado só, uma perspectiva apenas. E mesmo julgar alguém nesse meio não é algo fácil ou simples. Ao mesmo tempo em que havia soldados que matavam e utilizavam da violência como se estivessem fazendo algo pela própria vontade deles, acreditando estarem completamente corretos, houve também quem não concordasse com o que estava acontecendo, mas não sabia ou não tinha coragem de se rebelar e agir de modo diferente; porque a desordem, nesses casos, pode facilmente ser punida com morte. É realmente uma questão complicada... Que ficará em aberto, porque não tenho "bagagem" para ir além disso.

Na obra, vemos a visão de Szpilman, um judeu, sobre esses anos de guerra, desde a invasão da Polônia até o momento da "derrota" dos alemães. Pelo olhar de Szpilman fica fácil perceber a mudança drástica que a força e a invasão alemã causaram à Polônia, contrastando os momentos pré e pós-guerra. De uma cidade movimentada a um deserto; de uma vida confortável ao risco de morrer por inanição.  as bombas já causaram uma destruição imensa, e se engana quem ousar pensar que isso era o pior. Quando Varsóvia caiu nas mãos dos "arianos", muitos judeus foram mandados para um bairro criado especialmente para eles – isolando-os. Ergueu-se, então, muros delimitando uma parte da cidade. O apartamento de Szpilman e sua família, de certo modo por sorte, já que não precisaram procurar outro espaço para morar, ficava dentro dos limites do que foi chamado de "gueto". Isolados por esses muros e pelo patrulhamento dos alemães, o gueto acabou sitiando milhares de judeus, das mais diversas classes sociais etc. Uma "minicidade", em parte assolada pela fome, que não tinha a perspectiva de uma paz tão cedo; episódios chocantes e desumanos são presenciados. Uma reflexão de Szpilman sobre liberdade em meio a isso é completamente surpreendente e acredito ser difícil alguém terminar essa leitura sem um pingo de tristeza. Do outro lado do muro, os alemães se estabeleciam em Varsóvia e se ocupavam em manter os judeus sob extrema tensão e perigo de morte. Como o autor expõe, havia, inclusive, certas regras que, se quebradas, corria pena de morte; como o "toque de recolher", um horário no qual não podiam mais andar pelas ruas, pois, se pegos, poderiam facilmente ser mortos. Havia, inclusive, as łapanka. E frequentemente, por qualquer pequeno motivo ou por motivo algum, os alemães fuzilavam os judeus na rua. Essas ações, que demonstram uma violência e ignorância desnecessárias, principalmente se vistas pelo olhar de agora, são descritas em algumas cenas fortes, tristes e que sensibilizam muito.

Achei um pouco extenso para colocar como citação, então bati foto dessa parte, que acho importante mencionar. Faz parte da nota do tradutor (já disse que achei essa nota incrível? ❤) Considerando o contexto, aliás, faz muito sentido não ser traduzido, não é?

Umas das cenas mais tocantes do livro, aliás, é o momento em que ele se separa de sua família. Aos poucos já se sabe que isso vai acontecer, por pequenos trechinhos que Szpilman expõe, naquela sintonia de escrever sobre o passado, na tristeza de saber que aquela foi a última vez ou que seria diferente se tivessem tido mais tempo. Enfim, é um relato de um judeu na guerra, podem imaginar o que pode conter aí.

"Outras crianças tentavam sensibilizar o coração das pessoas dizendo: 'Estamos, realmente, com muita, muita fome. Não comemos há muito tempo. Deem-nos um pedaço de pão, ou, pelo menos, uma batata ou uma cebola, para que possamos sobreviver até amanhã.' 
Mas quase ninguém tinha uma mísera cebola, e mesmo se alguém tivesse, seu coração não mandaria cedê-la. A guerra havia transformado os corações em pedra." (SZPILMAN, 2008, p. 75).

Sobre o relato de Szpilman, vale ressaltar, ainda, dois pontos. Primeiro, a respeito do título. Ele era um pianista, e trabalhava numa rádio. No decorrer das páginas vamos vendo que ele realmente leva isso a sério e até parece ser um de seus impulsos para seguir em frente; em alguns momentos, principalmente nos primeiros anos da guerra, ele se preocupa com sua carreira após a guerra, e tenta proteger suas mãos para que não precise desistir do piano para sempre. Pode parecer um pouco bobo, mas é uma atitude bonita; a música para ele, parece, era mais do que notas uma atrás da outra. Um ponto sutil, mas com certo encanto, refere-se a última música que tocou antes de a rádio em que trabalhava "fechar" por causa da guerra. A mesma música, Noctune No. 20, de Chopin, fora tocada quando esse período estava terminando, o que seria o "fim" da guerra.

O segundo ponto refere-se à escrita de Szpilman, e, quanto a isso, jamais falarei melhor do que Wolf Biermann, no epílogo do livro. Portanto, segue as palavras dele:

"[...] embora este diário tivesse sido escrito 'a quente', pois surgiu quando as ruínas ainda fumegavam e ainda ardiam as cinzas da Segunda Guerra Mundial, a linguagem usada por Wladysław Szpilman é, surpreendentemente, serena. O autor descreveu tudo por que acabara de passar com um distanciamento quase melancólico. Tenho a impressão que ele ainda não havia voltado a si totalmente depois da viagem por círculos infernais e relata os fatos como se tivessem sido presenciados por outra pessoa; por alguém em quem ele se havia transformado quando a Polônia foi ocupada pelos alemães." (Wolf Biermann, no epílogo Uma ponte entre Wladyslaw Szpilman e Wilm Hosenfeld)

A obra é pequena, pode ser lida em poucos dias, mesmo com intervalos no meio, mas mostra ter um peso imenso, um pedaço de uma história que mostra muitas outras. Histórias que se intercalam, se sobrepõem, se respeitam ou se aniquilam. Pessoas que pensam, que amam e que vivem; pessoas que simplesmente seguiam. Judeus e alemães, apesar de serem definições fortes e marcadas por suas histórias, não podem ser considerados como rótulos. Porque são só isso; as pessoas, por 'n' motivos, veem mais do que há. Infelizmente, ainda é assim. É um círculo que talvez não tenha fim, só muda a intensidade.

Enfim, já não bastasse o incrível relato de Szpilman, ao final da obra somos apresentados a uma parte adicional, composta de fragmentos de cartas do alemão Wilm Hosenfeld. Sem saber a respeito dele, não é curioso ter textos de um alemão num livro de um judeu que sofreu por causa dos alemães? Pois é, é surpreendente: o conteúdo é incrível!

"Tudo leva a crer que a humanidade está condenada a fazer mais mal do que bem. O amor ao próximo é um dos maiores ideais sobre a terra." (W. H., em 26 de junho de 1942).

"Todos os seres humanos têm dentro de si maldade e instintos animais que afloram quando não são coibidos. Sim, é preciso ter os mais baixos instintos para perpetrar esses homicídios entre os judeus e os poloneses." (W.H., em 13 de agosto de 1942).

"Os mentirosos e falsários terão que desaparecer e perder o seu poder ditatorial para que a dignidade possa voltar a reinar entre os homens." (W.H., em 21 de agosto de 1942).

Por fim, e terminarei o texto com uma citação, queria mostrar que até mesmo o aspecto religioso aparece no texto de Hosenfeld. Sabem aquela questão de "por que Deus permitiu isso?"? Imaginem o quanto ela não deve ter surgido nesses momentos! E o quanto não está por trás dela, não é? Não precisam ser grandes eventos, aliás, para que ela surja, mesmo quando é algo menor e regional, uma morte isolada, ela aparece. Não sou religiosa, mas mesmo assim gostei bastante de pensar a respeito – sobre nosso livre arbítrio e o que fazemos com ele. Descobri recentemente, aliás, que um filósofo, ou algo assim, há muitos anos, veio em defesa e expôs algo que perpassa no discurso de W. Hosenfeld.

"Por que Deus permitiu esta guerra terrível com as suas incontáveis vítimas? Refiro-me aos desumanos ataques aéreos, o pavor incutido na inocente população civil, as sevícias cometidas nos campos de concentração e o assassinato de centenas de milhares de judeus. Será que Deus é culpado? Por que não intervém, por que permite que tudo isso aconteça? São perguntas que podem ser feitas, mas não podem ser respondidas. A saída mais fácil é a de tentar jogar a culpa nos outros. Deus permite a maldade porque foram os homens que a escolheram; mas agora, graças à maldade e à imperfeição humanas, hão de sentir os infortúnios que cairão sobre eles. Nada fizemos para impedir a ascensão do nazismo e traímos os nossos próprios ideais - os ideais de liberdade individual, da democracia e da escolha religiosa" (W.H., em 6 de julho de 1943).

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* Sobre isso, recomendo a leitura do texto A propósito da problemática do mau em Hannah Arendt, de Odilio Alves Aguiar. O texto está disponível neste link. Não é um texto muito fácil de ler, e eu admito não ter entendido muito, mas a leitura vale a pena para os interessados. Inclusive participei de uma aula em que discutiam esse texto e foi bem interessante. Durante o debate foi tocado bastante no mau banal e em como as pessoas, em momentos de guerra e semelhantes, são capazes de matar sem remorso etc. Enfim, vale a pena ler.

SZPILMAN, Wladisław. O pianista. Tradução de Tomasz Barcinski. 2. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. 224 p.